Marca do sofrer
- barbarablanco
- Jan 7, 2020
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Bárbara Blanco
Fernanda Gasel
Eu estava super atrasada. Tentei achar a roupa certa tantas vezes que perdi a noção do tempo. Mas tudo valeu a pena no momento em que o vi de longe no barzinho que combinamos e ele me olhou de cima a baixo com um sorriso de iluminar o ambiente, afinal, olha esse cara! O conheci pelo Tinder e nem acredito que demos match.
O nome dele é Ricardo, mora na zona sul de São Paulo e cursa direito na FGV. Seu pai é dono da própria empresa de advocacia e, conforme ele vai falando sobre, só consigo pensar no que vou contar para as minhas amigas da Faculdade no dia seguinte. Curso letras na PUC, meu sonho desde que eu era criança, já que sempre amei ler e me inspirar nas histórias criadas pelas minhas escritoras favoritas.
O encontro correu muito bem e o convidei para ir a minha casa. Meus pais me ajudam a bancar um apartamento perto da faculdade e eu estava de carro, um presente de quando fiz 18 anos, então não teria problema o levar até lá.
Conversamos a noite inteira e no dia seguinte nos despedimos com um beijo e uma promessa de nos vermos de novo ainda naquela semana.
Depois disso, tudo pareceu acontecer rápido demais para ser verdade e eu me iludia com a ideia de que era porque nos apaixonamos profundamente. Passamos um mês nos vendo praticamente todos os dias, até que oficializamos nosso namoro. Minhas amigas viviam me dizendo que dava para ver a felicidade estampada na minha cara e eu não sabia nem explicar a sorte que sentia por tê-lo encontrado. Ele era perfeito, fazia eu me sentir única e amada.
No dia que seria nosso aniversário de 4 meses, ele me surpreendeu na faculdade. Eu estava conversando com Marcos sobre a entrega de um trabalho que faríamos juntos. Ricardo nos viu de longe e entendeu tudo errado, quando o vi e fui até ele, não entendia o olhar de raiva destinado a mim. Fomos até a minha casa e ali ele teve uma crise de ciúmes, me xingou de piranha e disse que via o jeito como me insinuei para meu amigo. Demorei para explicar e tentei fazê-lo entender que não tinha com o que se preocupar, mas ele insistiu em me alertar para me afastar. A partir dali, decidi não falar mais com Marcos, a não ser sobre o trabalho.
Além do meu colega, Ricardo pediu para eu rever as minhas amizades, especialmente a Luana e a Heloísa, já que elas deveriam no mínimo saber das “intenções” de Marcos e por isso não seriam boa influência. Eu debitei isso ao amor incondicional que ele sentia por mim, e acreditei que ele estava certo e elas realmente não eram boas amigas. Além disso, não vi motivo em aborrecê-lo mais ao ficar tanto tempo com elas, preferi me afastar aos poucos.
Ele também disse que mesmo morando sozinha eu dependia muito dos meus pais, já que via eles todo fim de semana, e que sentia falta de ficar comigo quando estava na casa deles. Acreditei que se eu realmente quisesse ser independente tinha que parar de conversar tanto com eles, e assim, me afastei da minha família, para ficar cada vez mais tempo com Ricardo.
Com o passar dos meses, ia me sentindo cada vez mais sozinha, mas valia a pena se como resultado daquilo eu pudesse ter ele para sempre comigo. Eu o amava e ele me amava também, mesmo comentando às vezes que eu tinha sorte de ter alguém como ele porque nunca conseguiria outro melhor, até porque era verdade! Eu tinha muita sorte, não podia nem pensar em deixá-lo partir, ele era a única pessoa que me aguentaria com todos os meus defeitos, como ele mesmo dizia.
Fui percebendo com o passar do tempo que tinha muitos deles, aliás. Ricardo sempre me dizia que eu me vestia de forma muito vulgar, afinal, eu era uma moça comprometida, não podia envergonhar ele dessa forma. Saias e decotes não eram mais uma opção para mim, assim como o batom vermelho.
Mudei isso em mim quando ele me viu um dia me arrumar para um encontro do seu trabalho e quando chegou para me buscar, disse que daquele jeito não me levaria a lugar algum. O que seus amigos iam pensar de ele deixar sua mulher se exibir daquela forma? Acreditei ser verdade, acatei sua decisão, mesmo assim ele preferiu ir sozinho e me deixou em casa mais uma noite enquanto ele bebia com os amigos.
Todos me diziam como ele era perfeito, o homem ideal, o sonho de toda mulher, então quando ele me dizia para eu comer direito ou que eu não era inteligente o bastante para entender, como eu poderia discordar? Como eu poderia não concordar que ele estava correto em cuspir na minha cara ao ver que eu tinha aceitado a solicitação de amizade de um primo meu no Facebook? Até porque, ele não sabia que era meu parente, então não tinha como ser culpa dele, mas sim minha que não soube explicar a situação.
Luana e Heloísa, juntamente com a minha família, eram as únicas que eram contra aquele relacionamento. Diziam que me viam deteriorar a cada segundo, emagrecer porque as noites sem ele não me traziam apetite e as noites ruins com ele traziam menos ainda. Elas viviam tentando me trazer de volta. Minha mãe me mandava mensagens diariamente, então decidi seguir a recomendação de Ricardo e bloqueá-la.
A vida começou a parecer não fazer mais sentido e no dia que Ricardo viu Marcos me mandar mensagem para comemorar a nossa nota máxima no trabalho do final do ano, para ele foi a gota final do meu mau-comportamento. Nesse dia, eu só me lembro do primeiro chute, depois tudo vem num borrão. O momento em que a dor superou qualquer outra sensação e o lado ruim superou o lado bom. Lembro de ouvir ele me xingar e lembro de ouvir a sirene da polícia de longe chegando pelo aviso dos nossos vizinhos. Mas principalmente, lembro de que quando a polícia o levou algemado e me levantou, apesar de tudo, eu só conseguia pensar em como eu viveria sem ele.
Fiquei dias no hospital, rodeada de amigos e familiares que não via há muitos meses. Senti-me amada da forma que nunca fui com Ricardo e, apesar de ainda não entender direito, percebi ali que o problema não era eu.
A família dele pagou a fiança e ele saiu da prisão em menos de duas horas, sem nenhuma outra consequência. A minha fez questão de conseguir uma ordem de restrição contra ele, embora eu ainda sonhe com ele me batendo todas as noites. Apesar disso, a agressão física não se comparou a dependência psicológica pela qual fui submetida e por isso muitas vezes passou pela minha cabeça a ideia de voltar com Ricardo.
Hoje, meses depois de todo o ocorrido, tudo é claro. Por isso vim contar minha história. Tudo era um sonho, até de repente não ser mais. Não existe motivação plausível para o que ele fez. O abuso pelo qual passei nunca vai fazer parte da minha evolução como pessoa, mas quando encaramos algo assim, a forma como lidamos com isso ensina. Tudo o que podemos compreender é que somos melhores do que essa situação e merecemos mais. O que eu passei fez com que eu adquirisse depressão e até hoje sofro de ansiedade ao pensar em contar sobre isso, porém, aprendi que a única forma de ajudar é testemunhando o que aconteceu. Por isso vim aqui hoje, por isso decidi palestrar sobre o assunto. Se abram para que possam se curar, tornando possível que outras também se curem.
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